Estar.
Intensamente.
Um Pulo, um abraço, risos, espantos, oferendas, chorar de perdas, celebrar de ganhos. Danças, sonos, cirandas, quietudes. Labutas, passeios, redes ao mar, carroças à poeira, sol animado, chuva aninhada. O contrário do avesso, o outro lado do mesmo. Trivial, único, banal, absurdo. Habitar.
Uma casa como a do poema LIQUIDAÇÃO de Drummond. A que foi vendida por 20 contos, com seu bater de portas, seu vento encanado, os seus pecados cometidos e os ainda por cometer.
As andanças repetidas, o movimento. Carregando a casa como o caramujo que tem no próprio corpo o abrigo. Já chega com o pertencimento, toda a terra é dele. Habitantes de si, que a si perambulam, em trilhas de existência, despertar de mundos.
Olhos abertos, se cerram é em sonhos. Ou em pesadelos, reais, imaginários. O real é breve, a imaginação pode levar séculos.
Gente reluzente é a que aqui se encontra. Flagrada em acordo mágico pela poesia multifacetada da lente curiosa. Luz que borda o tempo na fiação do instante.
Encontro com a vontade, a dificuldade, a paixão.
Com o existir.
E eis que são.
Habitantes.
Tuty Osório
Recentemente, vi afixada na parede da casa de uma jovem artista a seguinte frase: “Você não tira uma fotografia. Você faz uma fotografia”. O tirar subtrai. O fazer cria, acrescenta, compartilha, enriquece.
Já apresentei algumas exposições de fotos de Celso Oliveira. Mas certamente, a frase acima é a que melhor expressa o teor de verdade das fotos da sua exposição Habitantes.
O olhar de Celso nos convida, ou melhor, nos conduz no processo de sua construção poética compartilhada das personagens presentes na captação do instantâneo de suas lentes. Nela, não há necessidade das cores saturadas como ele faz em outros trabalhos já expostos. Tudo é definido e delineado no contraste P&B. Cada clique adensa num átimo momentos aparentemente fugazes que perduram e se estendem em processos narrativos em nossas mentes contemplantes e participantes de sua diversidade poética nos vários exemplares do nosso mundo.
O artista francês Marcel Duchamp dizia no início do século passado que “são os olhadores que fazem um quadro ser uma obra de arte”, assertiva que enriquece os dizeres da parede da jovem artista. Cada foto desta exposição provoca nosso olhar buscando e construindo o sentido poético que nela encerra: a compulsão contrita e mística dos penitentes da Procissão do Círio de Nazaré; o malabarismo maroto e moleque do jovem que faz da bola de futebol parte integrante do seu corpo, em Brasil bom de bola; do rosto da mulher no canto da foto que se funde à linha do horizonte deixando-nos a dúvida ambivalente, se nos contempla ou se é contemplada; das mãos infantis entrelaçadas na coluna que insinuam a ingenuidade do jogo de esconde-esconde, em Quem somos nós; no largo vão da rede rasgada, emoldurando um grupo de pescadores em animada conversa.
O poeta Terêncio proferia na Roma antiga: “Sou humano, e nada que é humano me é estranho”. Sua sentença geralmente é mencionada e aplicada no contexto da ética, ao nos reportarmos ao universo de possibilidades da conduta humana. Aqui, usando da licença poética, a deslocamos para o campo da estética, para a presente exposição. Para o olhar de Celso tudo, que é humano é uma promessa de arte.
Dilmar Miranda
O corpo de Celso Oliveira
Um “abraço” entre um macaco negro e uma menina.
Apaixonei-me de cara.
Os dois “habitantes” de um extremo do Brasil, no Oiapoque. Dois seres amazônicos. Não sei quando tive esse apaixonamento à primeira vista, sei que fui abraçado ou me abracei com aquela imagem como se tivesse sido flagrado ou “invadido” pelo olhar do fotógrafo Celso Oliveira.
O macaco, a menina e eu espectador.
“Invadido” pode soar melindrante para um apanhador de imagens públicas, um catador de inesperados ou de cenas romanceadas captadas pelos olhos e o resto do corpo de quem as clica. Mas não é só isso a significação das existências. Há tantos subtextos e invenções para além do “real”, do “documental”, da “foto arte” e da performance que se cria.
Aqui, o “invadido” vai sem nenhuma doxa.
O olhar de Celso Oliveira não é senso comum, foge às escritas protocolares. Pode até ser um recorte-discípulo do mundo, de uma escola de mentalidades de seu tempo, mas é também um ensaio inquieto aos 48 anos de saídas para fotografar.
Todo deslocamento é um risco de imagens querendo ser ou ficar só no prazer de ter esbarrado.
Sempre espero, também, numa fotografia o que minha filha, Sarah, me falou ainda criança em alguma exposição ou quando ofereci uma imagem do mangue do Parque do Cocó (eu acho).
“Pai, parece que essa foto leva a gente para dentro da história. O senhor entra também?”.
Fiquei olhando, vendo o corpo dela entrar e sair da fotografia com as pernas alegres, os olhos cheios de asas e um prazer quase indizível. Só fiquei imaginando, ela se torcia com alguma descoberta.
Assim, me arrisco na semiótica simples e sofisticada de um olhador.
Dizer que entro e experimento as imagens servidas pelo olhar de Celso Oliveira.
Numas fabulo, noutras construo romances particulares, há crônicas, contos ou narrativas sem ortodoxias. O “menino negro com a bola branca de futebol” em primeiríssimo plano no sonho de alguém. Imagem cheia de triângulos obtusos!
Eu enxergo o que me apraz.
“As moças quarando ao Semiárido litorâneo, pernas enroscadas”. “Um beijo na boca, com vontade, entre um rapaz com a mão na bunda de uma moça, a cidade atrás” e eu querendo entrar naquele affair.
Meninos, mãos, velhas em trincas, pescadores (é tão arriscado fotografar pescadores, sertanejos e romeiros), retratos de rostos, gente que sonhou com o mar e um infinito de “embiras” de gente de muitos cantos da Terra e as existências perenizadas pelo olhar do fotógrafo ainda em construção.
Eu habito, tu habitas, ele habita, nós habitamos, vós habitais e eles habitam as imagens partilhadas por Celso Oliveira. Em qualquer tempo, em qualquer lugar por onde os olhos peregrinaram e se permitiram.
Tudo retratos dos outros e autorretratos.
Demitri Túlio
É jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Atualmente é repórter especial e cronista do jornal O POVO em Fortaleza, no Semiárido brasileiro. É, também, escritor de literatura voltada para crianças. Pesquisador-cidadão do Parque Estadual do Cocó (Ceará), onde, desde de 2007, fotografa e anota sobre a existência e extinção dos seres não humanos que vivem na Unidade de Conservação de Proteção Integral. Aos 27 anos de carreira no jornalismo, ganhou mais de 40 prêmios nacionais, regionais e internacionais de jornalismo. Entre eles, seis prêmios Esso, dois da Sociedade Interamericana de Imprensa, três Embratel, quatro BNB e outros. @demitritulio
Lá de dentro das paisagens e dos retratos, os habitantes miram o fotógrafo com a bela estranheza do afeto. Nessa troca de olhares, com a luz do Ceará ou do mundo como testemunha, Celso Oliveira recupera a delicadeza perdida — nada mais extraordinário e precioso nesse momento embrutecido do país e do planeta.
Xico Sá
Jornalista e escritor.